terça-feira, 13 de março de 2018

Pedro, 22 anos, empregado de supermercado.
Suspendeu temporariamente o curso de gestão empresarial.

      Caminha rapidamente deixando a porta do café fechar atrás de si. Fecha o kispo, calça as luvas e apalpa os bolsos do casaco e da mochila, como quem confirma que tem tudo o que precisa. O frio daquela manhã queimava-lhe o rosto e criava nuvenzinhas de vapor que lhe embaciavam os óculos. Cumprimenta a Dª Alzira pelo caminho e dá de caras com uma colega de trabalho. Não queria discutir porque, primeiro evita o antagonismo, e segundo, porque tinha pressa. Mas queria satisfações. Porque é que ontem deixou todo o trabalho de reposição para ele fazer sozinho e saiu sem avisar ninguém, obrigando-o a sair 2h mais tarde. Novamente. Claramente ela não esperava vê-lo ali. Pede-lhe desculpa, que agora tem pressa, hoje está de folga e que na terça feira lhe explica tudo. Insistente, ele retira do bolso uma lista imensa das tarefas que precisam de fazer até ao final do mês, e começa a enumerá-las uma por uma enquanto lhe segura num braço. Caso falhem é provável que seja despedidos. Se a ela perder o emprego não faz diferença.. E repara que o seu autocarro se aproxima da paragem. Despede-se contrariado e dá uma corrida até à paragem.

      Senta-se num lugar junto à janela e olha ansiosamente para o relógio. Algumas paragens mais à frente no percurso entra o Ricardo. Um rapaz ruivo e sardento com um ar simpático que se senta no banco em frente. "E então, 'tás fixe?" pergunta sorridente. Pedro sempre invejou positivamente a eterna boa disposição da criatura. E era contagiante. A sua presença acabava por beneficiar bichos de disposição nervosa, como era o seu caso. "S-sim.." responde hesitante "pelo menos eu acho que sim", sorrindo de volta, cogitando agora se haveria realmente um motivo para ficar tão ansioso. Lembra-se do que comprou no café e pergunta-lhe se se importa que coma qualquer coisa. E começa a mordiscar o seu pão com manteiga enquanto, ainda, enumera outra vez toda a lista de coisas que precisa de fazer até ao fim do mês, desta vez para o novo interlocutor. Conta que antes de seguir para o trabalho precisa de passar pelo banco. Explica que no dia anterior perdeu pelo menos 40 minutos só a contar e recontar dinheiro que não batia certo com as contas do dia. "Juro-te, se este dinheiro fosse meu não me importava nada de ficar a contá-lo e a olhar para ele o dia inteiro. Beijava cada uma destas notinhas" - e chuta uns beijinhos repicados para o ar - "tomava banho e dormia com elas... mas nada disto é meu... Nós não recebemos nem um décimo disto por mês". Ricardo, surpreendido (coisa rara) - " e... tens isso tudo... aí contigo?" - pergunta, apontando para a mochila que seguia junto aos pés do colega. Pedro acena que sim, mas não sem antes olhar por cima do ombro para confirmar que aquela conversa era mesmo privada. Não era tarefa para nenhum deles. Que ninguém lhes paga para aquela responsabilidade. Ou risco. Pedro volta a ficar ansioso e tira o casaco. Confirma novamente que tem nos bolsos as chaves, carteira, telemóvel, documentos... Entretanto o autocarro aproxima-se da sua paragem. Despede-se do colega com um até logo e dirige-se para banco.

      O empregado bancário pede pelos seus dados e conduz o cliente até aos cofres gaveta, algures no sub-solo e retira-se. Pedro observa-o a subir as escadas. Aprecia a eficiência e descrição das pessoas deste tipo de trabalho. Pousa a mochila no chão, abre-a e retira cerca de um quarto das notas que trazia no saco, colocando-as na gaveta respectiva, junto a outros macinhos de notas. Coloca a gaveta no seu lugar e fecha-a, usando novamente chave que trouxe de casa. Suspira fundo e veste o casaco, agora mais tranquilo. "Bom, agora vamos tratar do seu depósito, Sr. Jerónimo Martins", pensa sorridente enquanto sobe as escadinhas duas a duas até ao piso superior. Despede-se cordialmente do empregado e sai novamente para o frio da rua.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Mal por mal

      Era um dia estranho para um verão, considerando o normal ali. Estava nublado e muito calor. "Tempo de trovoada". Era o que a dizia a avó, pensou Marilena, Carregava três sacos pesados de compras e caminhava no sentido do supermercado, contrariamente ao que seria suposto. Tinha-se esquecido da carteira. Provavelmente junto à caixa registadora, mas não era certo. Não contava em fazer aquele percurso por três vezes, assim carregada. Mas tinha receio de perder tempo e que alguém a roubasse no entretanto. Quando finalmente chegou ao supermercado estava num desalinho. Transpirada, cheia de fome e muito desconfortável. Assim que recuperou a carteira decidiu que seria boa ideia descansar um bocadinho e comer qualquer coisa num café, antes de voltar para casa. Entrou, fez o pedido e sentou-se a uma das mesas. "Pronto. Agora é só ganhar coragem para voltar novamente", pensou. Depois disso teria ainda que preparar um bolo para uma festa para a qual fora convidada. Queria causa boa impressão. Pelo menos na anfitriã. Durante meses tentara chamar a atenção dela no emprego. Sempre de um modo discreto, claro. Mas não estava nada à espera que a convidasse. Para coisa nenhuma, na verdade. E foi assim de chofre, mesmo no dia antes de começar as férias. Mas todo este esforço talvez já não fosse justificável. "E eu odeio festas, caramba"...

     Serviram-lhe um café queimado e um pastel de nata com pelo menos três dias. Bebeu toda a água de torneira do copo, porque hidradatação é importante e olhou para o relógio de parede em cima da máquina do tabaco. Por esta hora já deveria ter almoçado e começado a preparar o bolo. No entretanto, tomaria um banho e tentaria tornar-se apresentável, com ar "de festa". Queria mesmo que ela a visse de outro modo, talvez mais... sofisticada? "eu sei lá o que é que eu quero...", arrumou o pensamento enquanto se levantava e preparava para pagar um bolo rançoso e um café que não bebeu. Foi então que reparou que todas as notas e moedas tinham desaparecido da carteira recuperada. Quem quer que a tivesse devolvido teve o cuidado de a limpar primeiro. Atencioso. No café também não era permitido fazer-se pagamentos abaixo de 5 euros com o cartão do multibanco. "Não, não vou carregar esta tralha toda até á caixa MB mais próximo", pensou. E perguntou ao senhor do café se haveria problemas, se incomodava, que deixasse as suas coisas ali num cantinho, enquanto iria levantar dinheiro para lhe pagar. Que podia mas que ninguém se responsabiliza por nada, foi a resposta. "Serve".

    Esperou numa fila de 4 pessoas enquanto o tempo ia ficando cada vez mais escuro. Levantou 40 €. Precisava de poupar dinheiro mas já não tinha coragem para voltar para casa a pé. Além disso, de certeza absoluta que iria chover, apesar do calor. Voltaria de autocarro. Não tinha passe para este mês, teria portanto que pagar directamente ao motorista. Quarenta minutos depois regressou então ao café para pagar a dívida. Não viu os sacos de compras em lado nenhum. Ah, pois é, não reparei. Desculpe lá. "Mas.. " Eu disse-lhe que não nos responsabilizavamos por coisa nenhuma foi a resposta. Não acreditava que fosse possivel ser-se tão canalha mas também não sabia que mais fazer. "Esquece lá o bolo". Talvez já nem tivesse tempo para isso.

    Saiu do café e dirigiu-se, conformada, para a paragem de autocarro. As primeiras pingas de chuva começaram a cair. Deu uma corrida e conseguiu resguardar-se rapidamente por baixo da protecção da paragem. Mal por mal, pensou, estava ao menos livre daquele peso. Quando o autocarro chegou já a chuva caía forte. Marilena entra depressa e coloca 5 euros no balcãozinho do motoriasta.  Mas aparentemente já ninguém se desloca de autocarro sem passe ou bilhete comprado préviamente e o motorista não podia aceitar dinheiro.

    Sob a chuva, mesmo sem os sacos das compras, o percurso até casa demorou mais do que o seria o esperado. Assim que chegou dirigiu-se pesada e calmamente até à casa de banho. Tirou pacientemente a roupa molhada que se lhe colava ao corpo e deixou-a cair no chão. Preparava-se para tomar banho mas em vez disso sentou-se, despida e muito cansada, num banquinho do compartimento. Tirou uma toalha, envolveu-se nela e começou a secar-se, muito devagarinho, pensativa. Depois levantou-se dirigiu-se para o quarto. Parou em frente à cama ainda desfeita. "Não, não gosto de festas e nem há ninguém que eu queira tanto que justifique este sacrifício". Vestiu uma camisola velha e embrulhou-se no endredon grande e fofo. O telefone ainda tocou 2 vezes mas ela só acordou na madrugada seguinte.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Alfa Betos

Ele viu-a primeiro. Tinha acabado de subir os degraus para a plataforma do comboio e parecia ocupada. Trazia um bloco de notas e uma caneta numa mão e o telemóvel na outra. Parecia absorta enquanto olhava para o ecrã. A certa altura levanta o olhar para o relógio por cima das cabeças dos passageiros que esperavam na plataforma. Por pouco os seus olhares cruzaram-se. Ela parecia tranquila e algo distante. Sentia-se tenso pois preferia evitar o encontro. No entanto estava preparado. Mas o que é que havia para dizer sobre gente que, afinal, mal se conheceu e sobre coisas que mal começaram. Ela desapareceu sem dar justificações. Nem um mail, sms, nada. Desligou-se e, pensando bem, talvez tenha sido o melhor para os dois. Às tantas percebeu que, tão distraída só repararia nele se ele a interpelasse, ou... Não - pensou - Decidiu não facilitar e virar as costas àquele capítulo.

Ela subiu as escadas naquele modo "olhar de ovelha", pensativa, e voltou a olhar para o telemóvel. Foi enquanto olhava para o ecrã que pensou por um momento no que tinha acabado de ver. O seu olhar caiu no chão. "Era... era ele?". Visto de perfil parecia. Não se atreveu a levantar o olhar para o confirmar. Se pudesse não o ia "ver". Sendo ele, estava perto demais para o olhar "casualmente", confirmar, e fazer de conta que não o tinha visto.  Pessoas inexperientes nestas coisas de evitar gente tendem a ficar nervosas, apressam-se ou voltam para trás. Ela sabia muito bem que o truque para nos safarmos duma destas era fazer-se o que não se espera que façamos. Deveria, de um modo calmo e aparentemente ocupado, focar despreocupadamente em tudo, por exemplo, no casaco de alguém, numa comichão num dos braços, numa coisa perdida na mochila, nas nossas unhas, enfim, tudo menos na cara da tal pessoa. Mas estava ansiosa. A raiva e vergonha voltaram. Outra vez. Aquela coisa de se desfazer por qualquer idiota que diz umas coisas engraçadas... Gente que escreve é perigosa. Feliz o dia em que... "Calma, sua parva. Se calhar nem é ele" - pensou. E olhou para o relógio em cima tentando, sem o olhar directamente, ver se o reconhecia usando a visão periférica. Percebeu que ele estava pelo menos a olhar na sua direcção e assumiu que sim, era muito possível que fosse ele.  Fingiu a calma e a descontracção, e passou por ele com o nariz enfiado no ecrã. Na verdade não o conhecia nem aconteceu nada que não passasse de um mal entendido - pensou. Depois de passar por ele e estar já a uma distância razoável na plataforma não se atreveu a olhar para trás e confirmar, nem para ver como ele estava. Não faria diferença nenhuma. Razão tem a Raquel quando lhe diz que "all you need is consciência de classe". Como é possível ser-se tão ingenua... Isto de acreditar que somos todos iguais... Como é possível ser-se tão estúpida? Ela estaria sempre àquem e iria sempre detestá-lo por isso, bem como a todos os amiguinhos e amigas dele. Só agora via a arrogância de quem fala e vê o mundo de cima do banquinho do privilégio. "Betinho de merda..."