sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Alfa Betos

Ele viu-a primeiro. Tinha acabado de subir os degraus para a plataforma do comboio e parecia ocupada. Trazia um bloco de notas e uma caneta numa mão e o telemóvel na outra. Parecia absorta enquanto olhava para o ecrã. A certa altura levanta o olhar para o relógio por cima das cabeças dos passageiros que esperavam na plataforma. Por pouco os seus olhares cruzaram-se. Ela parecia tranquila e algo distante. Sentia-se tenso pois preferia evitar o encontro. No entanto estava preparado. Mas o que é que havia para dizer sobre gente que, afinal, mal se conheceu e sobre coisas que mal começaram. Ela desapareceu sem dar justificações. Nem um mail, sms, nada. Desligou-se e, pensando bem, talvez tenha sido o melhor para os dois. Às tantas percebeu que, tão distraída só repararia nele se ele a interpelasse, ou... Não - pensou - Decidiu não facilitar e virar as costas àquele capítulo.

Ela subiu as escadas naquele modo "olhar de ovelha", pensativa, e voltou a olhar para o telemóvel. Foi enquanto olhava para o ecrã que pensou por um momento no que tinha acabado de ver. O seu olhar caiu no chão. "Era... era ele?". Visto de perfil parecia. Não se atreveu a levantar o olhar para o confirmar. Se pudesse não o ia "ver". Sendo ele, estava perto demais para o olhar "casualmente", confirmar, e fazer de conta que não o tinha visto.  Pessoas inexperientes nestas coisas de evitar gente tendem a ficar nervosas, apressam-se ou voltam para trás. Ela sabia muito bem que o truque para nos safarmos duma destas era fazer-se o que não se espera que façamos. Deveria, de um modo calmo e aparentemente ocupado, focar despreocupadamente em tudo, por exemplo, no casaco de alguém, numa comichão num dos braços, numa coisa perdida na mochila, nas nossas unhas, enfim, tudo menos na cara da tal pessoa. Mas estava ansiosa. A raiva e vergonha voltaram. Outra vez. Aquela coisa de se desfazer por qualquer idiota que diz umas coisas engraçadas... Gente que escreve é perigosa. Feliz o dia em que... "Calma, sua parva. Se calhar nem é ele" - pensou. E olhou para o relógio em cima tentando, sem o olhar directamente, ver se o reconhecia usando a visão periférica. Percebeu que ele estava pelo menos a olhar na sua direcção e assumiu que sim, era muito possível que fosse ele.  Fingiu a calma e a descontracção, e passou por ele com o nariz enfiado no ecrã. Na verdade não o conhecia nem aconteceu nada que não passasse de um mal entendido - pensou. Depois de passar por ele e estar já a uma distância razoável na plataforma não se atreveu a olhar para trás e confirmar, nem para ver como ele estava. Não faria diferença nenhuma. Razão tem a Raquel quando lhe diz que "all you need is consciência de classe". Como é possível ser-se tão ingenua... Isto de acreditar que somos todos iguais... Como é possível ser-se tão estúpida? Ela estaria sempre àquem e iria sempre detestá-lo por isso, bem como a todos os amiguinhos e amigas dele. Só agora via a arrogância de quem fala e vê o mundo de cima do banquinho do privilégio. "Betinho de merda..."

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