segunda-feira, 12 de março de 2018

Mal por mal

      Era um dia estranho para um verão, considerando o normal ali. Estava nublado e muito calor. "Tempo de trovoada". Era o que a dizia a avó, pensou Marilena, Carregava três sacos pesados de compras e caminhava no sentido do supermercado, contrariamente ao que seria suposto. Tinha-se esquecido da carteira. Provavelmente junto à caixa registadora, mas não era certo. Não contava em fazer aquele percurso por três vezes, assim carregada. Mas tinha receio de perder tempo e que alguém a roubasse no entretanto. Quando finalmente chegou ao supermercado estava num desalinho. Transpirada, cheia de fome e muito desconfortável. Assim que recuperou a carteira decidiu que seria boa ideia descansar um bocadinho e comer qualquer coisa num café, antes de voltar para casa. Entrou, fez o pedido e sentou-se a uma das mesas. "Pronto. Agora é só ganhar coragem para voltar novamente", pensou. Depois disso teria ainda que preparar um bolo para uma festa para a qual fora convidada. Queria causa boa impressão. Pelo menos na anfitriã. Durante meses tentara chamar a atenção dela no emprego. Sempre de um modo discreto, claro. Mas não estava nada à espera que a convidasse. Para coisa nenhuma, na verdade. E foi assim de chofre, mesmo no dia antes de começar as férias. Mas todo este esforço talvez já não fosse justificável. "E eu odeio festas, caramba"...

     Serviram-lhe um café queimado e um pastel de nata com pelo menos três dias. Bebeu toda a água de torneira do copo, porque hidradatação é importante e olhou para o relógio de parede em cima da máquina do tabaco. Por esta hora já deveria ter almoçado e começado a preparar o bolo. No entretanto, tomaria um banho e tentaria tornar-se apresentável, com ar "de festa". Queria mesmo que ela a visse de outro modo, talvez mais... sofisticada? "eu sei lá o que é que eu quero...", arrumou o pensamento enquanto se levantava e preparava para pagar um bolo rançoso e um café que não bebeu. Foi então que reparou que todas as notas e moedas tinham desaparecido da carteira recuperada. Quem quer que a tivesse devolvido teve o cuidado de a limpar primeiro. Atencioso. No café também não era permitido fazer-se pagamentos abaixo de 5 euros com o cartão do multibanco. "Não, não vou carregar esta tralha toda até á caixa MB mais próximo", pensou. E perguntou ao senhor do café se haveria problemas, se incomodava, que deixasse as suas coisas ali num cantinho, enquanto iria levantar dinheiro para lhe pagar. Que podia mas que ninguém se responsabiliza por nada, foi a resposta. "Serve".

    Esperou numa fila de 4 pessoas enquanto o tempo ia ficando cada vez mais escuro. Levantou 40 €. Precisava de poupar dinheiro mas já não tinha coragem para voltar para casa a pé. Além disso, de certeza absoluta que iria chover, apesar do calor. Voltaria de autocarro. Não tinha passe para este mês, teria portanto que pagar directamente ao motorista. Quarenta minutos depois regressou então ao café para pagar a dívida. Não viu os sacos de compras em lado nenhum. Ah, pois é, não reparei. Desculpe lá. "Mas.. " Eu disse-lhe que não nos responsabilizavamos por coisa nenhuma foi a resposta. Não acreditava que fosse possivel ser-se tão canalha mas também não sabia que mais fazer. "Esquece lá o bolo". Talvez já nem tivesse tempo para isso.

    Saiu do café e dirigiu-se, conformada, para a paragem de autocarro. As primeiras pingas de chuva começaram a cair. Deu uma corrida e conseguiu resguardar-se rapidamente por baixo da protecção da paragem. Mal por mal, pensou, estava ao menos livre daquele peso. Quando o autocarro chegou já a chuva caía forte. Marilena entra depressa e coloca 5 euros no balcãozinho do motoriasta.  Mas aparentemente já ninguém se desloca de autocarro sem passe ou bilhete comprado préviamente e o motorista não podia aceitar dinheiro.

    Sob a chuva, mesmo sem os sacos das compras, o percurso até casa demorou mais do que o seria o esperado. Assim que chegou dirigiu-se pesada e calmamente até à casa de banho. Tirou pacientemente a roupa molhada que se lhe colava ao corpo e deixou-a cair no chão. Preparava-se para tomar banho mas em vez disso sentou-se, despida e muito cansada, num banquinho do compartimento. Tirou uma toalha, envolveu-se nela e começou a secar-se, muito devagarinho, pensativa. Depois levantou-se dirigiu-se para o quarto. Parou em frente à cama ainda desfeita. "Não, não gosto de festas e nem há ninguém que eu queira tanto que justifique este sacrifício". Vestiu uma camisola velha e embrulhou-se no endredon grande e fofo. O telefone ainda tocou 2 vezes mas ela só acordou na madrugada seguinte.

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